quarta-feira, 20 de novembro de 2013

A DITADURA EM COISAS MIÚDAS


          As recentes e chocantes “revelações” em torno das atrocidades cometidas pela ditadura civil-militar que comandou o país, entre meados das décadas de 1960 e 1980, ainda incomodam muito a nossa sociedade, permanecendo como uma espécie de esqueleto no fundo do armário de nossas consciências. O uso das aspas em relação à palavra revelações é absolutamente proposital, uma vez que muito do que está vindo à tona já era bastante conhecido, mas estava recalcado nas memórias de quem gostaria de esquecer para sempre (algozes desejosos de esconder seus delitos e algumas vítimas traumatizadas pela violência sofrida), especialmente entre os que apoiaram a ditadura, ou que foram no mínimo omissos (o que não deixa de ser uma forma de apoio dissimulado), e hoje gostam de posar de bons moços do passado. Alguns desses mesmos possuem a capacidade camaleônica de apoiar qualquer grupo que estiver nas cercanias do poder, como numa inversão de conhecido ditado: “¿Hay gobieno? Soy favorable”... Uma cultura autoritária subjaz no fundo da “alma nacional”, não poucas vezes se voltando contra pobres, indigentes e desfavorecidos de todo o tipo nessa nossa pátria, que ostenta varonil a condição de uma das campeãs mundiais de exclusão social. Não se toca fogo em índios ou mendigos amiúde sem uma sofisticada elaboração cultural como pano de fundo.




Uma das questões menos percebidas nos debates em torno da instalação da Comissão da Verdade, diz respeito ao fato de que nos defrontamos com essa cultura autoritária profundamente enraizada e nos cabe aprofundar o debate sobre o como será possível enfrentá-la em toda a sua extensão. Como será possível explicar que boa parte da nossa sociedade se divirta com programas de gosto no mínimo duvidoso como os reality shows da vida, cuja finalidade essencial é humilhar, expor ao ridículo, ao sofrimento? Como é que pessoas supostamente saudáveis não vomitam – ou até vibram entusiasticamente – ao ver Roberto Justus demitir outras pessoas, como se fossem ratinhos em um satânico laboratório social, ou Pedro Bial comandar rituais de sadismo explícito em horário “nobre” (que bem poderiam ser invadidos por defensores dos animais indignados com os maus tratos à espécie humana)? Como explicar a empatia generalizada com quem manda, quem pode humilhar e espezinhar os outros? Como equacionar devidamente o fenômeno aparentemente inexplicável da falta de civilidade no trânsito e da manifesta prepotência de alguns homicidas potenciais, que possuem carros possantes e se sentem os verdadeiros capitães do mato, soltos nas estradas e estacionamentos país afora?
Ainda falta muito – se é que um dia conseguiremos – para expurgar esse nosso lado herdado do baú escravista que é o lado mais obscuro de nossa cultura. O espírito da Casa Grande ainda reina inconteste em nossa sociedade. É o nosso “ovo da serpente”, chocado dia a dia sob o calor do nosso sol tropical e o nosso céu gentil. Para os interessados, não deixo de sugerir a estimulante leitura de “O Mulo”, de Darcy Ribeiro, um retrato em negativo dos desvãos da memória de nossos mandões, cujos bisnetos, trajados de terno e gravata, munidos da tecnologia mais sofisticada e ocupando os postos mais elevados de nosso mundo empresarial-político, ainda sentem saudades da senzala e do chicote para poderem exercer suas vocações com mais autenticidade.
Para estes, a democracia se resume ao que lhes favorece, a um rito meramente formal, ou como já tinha intuído João Goulart (à parte as seguidas controvérsias em torno do personagem) no famoso Comício da Central em 13 de março de 1964: Democracia para esses democratas não é o regime da liberdade de reunião para o povo: o que eles querem é uma democracia de povo emudecido, amordaçado nos seus anseios e sufocado nas suas reivindicações. A democracia que eles desejam impingir-nos é a democracia antipovo, do anti-sindicato, da anti-reforma, ou seja, aquela que melhor atende aos interesses dos grupos a que eles servem ou representam. Na mesma ocasião, indo além, o então Presidente declarou de alto e bom som a força do auto-engano que move parte de nossa consciência, que sofre crises histéricas de moralismo hipócrita e inquisitorial alimentado à mancheia por nosso oligopólio midiático: Ameaça à democracia não é vir confraternizar com o povo na rua. Ameaça à democracia é empulhar o povo explorando seus sentimentos cristãos, mistificação de uma indústria do anticomunismo, pois tentar levar o povo a se insurgir contra os grandes e luminosos ensinamentos dos últimos Papas que informam notáveis pronunciamentos das mais expressivas figuras do episcopado brasileiro. Não seria esse o combustível para alimentar a luta feroz pela manutenção de nossa sociedade de privilégios? Não seriam as manipulações de “ameaça do comunismo”, “baderna do vandalismo” e outras desse jaez uma confortável coberta para esconder o fato de que nossos maiorais desejam firmemente manter suas vidas nababescas acima da maior parte da sociedade?
Em 1964 tudo cabia no anticomunismo (repressão a reivindicações sociais diversas, moralismo exacerbado, um monte de coisas e até mesmo o comunismo, que serviu à medida como um “espantalho” para assombrar as senhoras da “boa sociedade”). Hoje continua cabendo um monte de coisa em rótulos de ocasião, para “explicar” o que não tem como esconder: uma sociedade violentamente cindida entre um topo que goza as delícias da existência e uma vasta base alijada de tudo isso. Esse é o verdadeiro combustível de nossas políticas de “insegurança pública”, para as quais não haverá policiamento que dê jeito. A propósito, não temos todos os elementos para entender toda a extensão do que acontece nos dias que correm e recebem o rótulo de “vandalismo” – mas que podem esconder desde a rebelião contra a violência diária a qual são submetidos jovens empobrecidos até a ação dos famosos “agentes provocadores”, que obram a serviço de “forças terríveis” escondidas no subsolo de nosso mundo social. Independentemente de tudo isso, gostaria de obtemperar que não me parece o melhor caminho destruir patrimônio público como telefones ou lixeiras, é preciso divisar caminhos efetivos para construir um futuro alternativo. A não ser que parte desse componente autoritário de fundo também se acople ao tecido de determinados grupos que apenas pretendem obter as condições necessárias para empunhar o látego sobre os outros.         
Por tudo isso mesmo, é que só conseguimos vislumbrar da ditadura o seu lado mais “espetacular” e “chocante”, as narrativas das horrendas perseguições, exílios, torturas, assassinatos, desaparecimentos e outras práticas de infernal teor. Ainda não foi publicamente avaliada a longa permanência dos esquadrões da morte, “mão branca” e toda a sorte de “clubes de extermínio” que possibilitaram, sob denominações diversas, o “sono sossegado” de nossas altruístas elites. Passa despercebida da maior parte a ditadura solerte, as coisas miúdas do cotidiano que se entranharam profundamente em nosso tecido social e cuja superação exigirá um longo aprendizado – lembrado oportunamente por uma das pessoas mais especiais que me honraram com sua amizade, o sociólogo e Ex-Presidente da UNE Vinícius Caldeira Brant, numa publicação acerca do Congresso de reconstrução da entidade em Salvador (1979): Pra reaprender a somar no movimento estudantil ou em qualquer outro movimento, vai ser necessário responder a uma prática democrática de tolerância que a ditadura fez que as pessoas desaprendessem –, ou seja, que a ditadura tinha exacerbado nosso traço autoritário mais que secular e que o aprendizado de uma prática efetivamente democrática levaria longos anos, talvez gerações. Eu acrescentaria, para o sorriso do amigo: e não é possível construirmos qualquer prática democrática mergulhados num oceano de injustiça social.

O "exílio interno" em O Toque do Silêncio.

          Essa ditadura miúda – ainda longe de seu ocaso – se manifestou na gestação de um ambiente asqueroso de bajulação de poderosos e de delação generalizados; no exercício sutil de um olhar seletivo, que evitava ver certos abusos e injustiças cometidos à luz do sol. Além da ditadura dos porões e grupos de extermínio, essa outra ditadura vicejou longamente, sendo aquela que dava sentido à dos quartéis: a peçonhenta ditadura do grande capital (lembrando da obra sempre marcante de Octávio Ianni), da exploração desenfreada e desavergonhada dos trabalhadores, somada à das pequenas perseguições do cotidiano, dos incalculáveis danos gerados a muitas pessoas que foram prejudicadas em seu ambiente de trabalho, nas suas relações de vizinhança, nos comentários à boca miúda que constrangeram indivíduos que “feriam a moral e os bons costumes”. Essa ditadura miúda foi tratada com brilho e rara sensibilidade e brilho em “O Toque do Silêncio”, de autoria de mais uma pessoa que me honrou com sua amizade, o historiador Francisco César de Araújo. No livro, através do seu alterego, o professor Júlio – um ex-militante do movimento estudantil que se tornara professor em uma cidade (qualquer cidade) do interior brasileiro nos finais dos anos 60 e início dos 70 – Chico Araújo denunciou o clima contínuo de delação, de controle, de perseguição que mostra o “lado civil da ditadura militar”, o lado miúdo que tinha na tortura sua outra e terrível face: ambas se alimentavam mutuamente. Na Escola, no bairro, nas mais comezinhas atividades diárias, esse ambiente “empesteado” se manifestava de sol a sol.
Não podemos deixar esquecer que muita, mas muita gente apoiou ativa ou passivamente a ditadura e exerceu do jeito que pode sua “ditadura particular”. Fosse a vítima a empregada doméstica, o menino de rua, a pessoa “esquisita” da vizinhança, essa ditadura penetrou por todos os poros de nossa sociedade. Não podemos deixar esquecer que maior parte dos meios de comunicação (o oligopólio midiático) que tece loas à democracia nos dias que correm, colaborou alegremente com o que alguém, numa dose deslavada de eufemismo e um acesso de cinismo, denominou de “democracia forte”.
Para não deixar de referir mais miudamente a um fato que nada tem de miúdo – pelo contrário, revela em sua extensão o descalabro do regime – lembro de um fatídico acontecimento no dia 25 de agosto de 1975, em João Pessoa: em meio às comemorações da semana do soldado, um festivo evento com direito a exposição de armamentos e veículos militares no ponto central da cidade, terminou com um trágico resultado: 35 mortos, 29 dos quais crianças. Por incúria ou outro problema que falta apurar, uma embarcação que fazia passeios na Lagoa do Parque Solon de Lucena naufragou e o desespero das pessoas e o despreparo dos promotores do evento consumaram o terrível acidente. Com certeza, não chegaria aqui a conceber qualquer propósito soturno no acidente (seria coisa inimaginável), mas a não apuração judicial das responsabilidades (como hodiernamente exigimos em relação da tragédia da Boate Kiss, em Santa Maria-RS), garantiu a impunidade para os culpados e a não reparação devida pelo Estado brasileiro. As famílias vítimas do terrível acidente devem receber as reparações do Estado, uma vez que a incapacidade do poder público de garantir a segurança da população e, nesse caso da Lagoa, a clamorosa incompetência, levou ao trágico desenlace. Como o incidente envolvia gente poderosa, sua investigação foi devidamente engavetada, assim como em muitas outras atrocidades cometidas pelo Estado brasileiro em relação à sua população. Lembremos ainda o caso da tragédia da Vila Socó (Cubatão-SP, 1984), quando uma comunidade foi totalmente destruída, com centenas de vítimas carbonizadas, dada a incúria e a prepotência dos diretores da Refinaria Artur Bernardes, que se recusaram a atender os reclamos da população sobre vazamento do gasoduto que atravessava o subsolo da comunidade: uma pequena fagulha e... muitas vítimas...

Tragédia da Lagoa - o Estado brasileiro precisa ser responsabilizado.

Creio que tragédias como a da Lagoa ou da Vila Socó são questões que exigiriam a investigação das Comissões da Verdade, por envolverem a falta de apuração por responsabilidades do Estado frente a tragédias sociais, geralmente anunciadas. Estado esse que sempre foi muito cioso de segurança pública quando essa envolvia e envolve a proteção dos bens e propriedade de nossos patrícios, mas que é insensível ou omisso quando essa segurança exige o cuidado com os mais desprotegidos frente à sanha do grande capital.
                           


Em 20 de novembro de 2013, 318 anos depois da morte de Zumbi dos Palmares pelas tropas a serviço da segurança e da propriedade dos poderosos de plantão.  


sábado, 16 de novembro de 2013

UMA HIPOTECA PARA O FUTURO? Em torno da propalada mudança da Assembleia Legislativa para o Altiplano do Cabo Branco.

Assembleia Legislativa - entre o conforto e a responsabilidade.  















           O fascínio das novidades convive com questões menos inocentes que mobilizam alguns arautos do novo. Não raras vezes, numa cidade, quando se exalta uma nova área como moderna, sofisticada, esse discurso traz à socapa inconfessáveis interesses de especulação, notadamente imobiliária, com suas decorrentes lavagem de dinheiro, superfaturamentos de obras e toda essa pletora de práticas que a sociedade, muitas vezes, finge condenar.
A propalada mudança da Assembleia Legislativa da Paraíba para o Altiplano do Cabo Branco segue uma desastrosa política urbana já iniciada décadas atrás com a mudança do Centro Administrativo do Estado para Jaguaribe, do Centro Administrativo Municipal para a Água Fria e a pulverização de ramos do Judiciário para áreas diversas da cidade, com tendência a se concentrar no Brisamares e Jardim Luna, às margens já congestionadas da BR-230 (não sendo nenhum exercício de futurologia prever congestionamentos-monstro na área após a instalação da Justiça do Trabalho e do Ministério Público nas imediações, para maior desespero dos “quase-futuros-ex-moradores” da Rua Casimiro de Abreu e adjacentes).    
Numa passagem clássica na qual discutia a formação das cidades brasileiras, o historiador Sérgio Buarque de Holanda nos comparava a “semeadores”, que fazíamos tudo à base do improviso, nos opondo aos povos “ladrilhadores”, marcados pelo senso de planejamento. Outros historiadores se contrapuseram, por vias diversas, a essa forma de análise e destacaram a questão de indícios de planejamento efetivo na formação de nossas urbes. Para embaralhar as coisas, fica a questão preliminar: ladrilhar seria necessariamente melhor que semear? Que tipo de ladrilhagem é efetivamente feita? A que interesses atende? Haveria uma oposição binária entre semear e ladrilhar ou ambos seriam processos muitas vezes complementares entre si? Nossas cidades, com esse tipo de crescimento, não estariam repetindo, em escalas distintas, ciclos de especulação-valorização-exclusão-violência? Enfim, vamos discutir algumas questões. 

Rua do Melão no começo do século XX.













          No filme Sábado (1995), de Ugo Giorgetti, o diretor abordou de forma mordaz os surrados discursos de “amor pelo Centro” e “vamos voltar às origens” na problemática metrópole de São Paulo, que propugnam iniciativas de “higienização do passado”, a fim de torná-lo uma terra de belezas, sem pobreza e cheia de heroísmos. Efetivamente, tais discursos se pautam por uma espécie de assepsia da História, elidindo os aspectos mais chocantes do passado. Falando em palavras redondas: o passado das cidades brasileiras (e nossa intrépida João Pessoa não é exceção) é marcado pela presença chocante da escravidão, da pobreza, da violência, do abandono, enfim, da nossa tão íntima, perversa e pitoresca convivência entre riqueza e miséria. Assim, sem muito rodeio, quando observamos antigas imagens de nossas cidades, poucas vezes ficam evidentes (ou são deliberadamente disfarçadas) as habitações precárias, as pessoas empobrecidas e assim por diante, como podemos verificar numa valiosa fotografia da Rua do Melão (Beaurepaire Rohan) no início do século XX. Que pena que as fotos não tem cheiros e barulhos!!! As tecnologias emergentes, logo que tornarem isso possível, poderão trazer várias vantagens e, com certeza, alguns incômodos.

Detalhe da Rua do Melão - passado a "terra de belezas".










Se realizássemos uma suposta viagem ao nosso “centro histórico” (neologismo para esconder o fato que o grande capital e a grande política abandonaram o lugar e foram “florescer” em outras plagas), ou mais precisamente nas imediações das atuais Praça Vidal de Negreiros, 1817 e João Pessoa, lá pelos finais do século XIX, encontraríamos o local povoado de ex-escravos, pobres, trabalhadores informais e toda uma pletora de gente que foi sendo escorraçada do lugar nos processos de modernização do século XX. Não é à toa que as antigas Igrejas do Rosário dos Pretos e da Mercês dos Pardos do local foram postas abaixo. Quem residia nesses lugares quando as mesmas foram erigidas em finais do século XVIII (que pena que os antigos mapas urbanos não representavam choças miseráveis que existiam na velha (então nova) cidade!!!)? Certamente não eram os pretensos afidalgados do lugar, que estavam mais acima, na parte mais alta nas Ruas Direita e Nova. Num processo que já vinha do final do Oitocentos, por volta dos anos 1920/1940, o lugar foi sendo seguidamente valorizado e “embelezado” para os bem-nascidos locais, sendo a populaça enxotada das redondezas. Esses processos não acontecem sem que estejam diretamente associados os ganhos dos ladrilhadores com as táticas ou astúcias de sobrevivência dos semeadores que laboram para se alojar nas fímbrias do tecido urbano valorizado e, assim, poderem defender seus modestos meios de vida.  
Eis que a cidade “descobre a praia” nos meados do século XX. Mesmerizados pela visão da cidade moderna, o paraíso tropical onde o sol nasce primeiro e apresenta uma pretensa qualidade de vida para os bem-afortunados, se transferem negócios, moradias e órgãos da administração pública para o lugar. As antigas povoações de pescadores (que ali estavam, como atesta um interessante depoimento do pastor Daniel Kidder que esteve em “Tambaiú” por volta de 1839 e conversou com pessoas do lugar) foram devidamente “realocadas” em outras plagas e seus moradores foram semear suas vidas onde pudessem habitar e ter algum trabalho. Em bairros abertos – ladrilhados – pela combinação entre os planos urbanos e as novas condições de transporte de massa, foi sendo destinada a moradia e serviços das populações de menor renda. Para os que habitavam os universos da pobreza “pura”, restaram os lugares menos prezados pelos negócios urbanos. Vejam-se os casos dos terrenos nos “fundos” de Manaíra, Tambaú, Bessa e Intermares, que vão se tornado progressivamente áreas consideradas “problemáticas” pelas autoridades da Capital e da Capitania. Não é futurologia também perceber o acúmulo de problemas de mobilidade urbana na nova fronteira do glorioso e solar porvir, o Altiplano do Cabo Branco, à medida do adensamento de Condomínios fechados, negócios e órgãos da administração nos grandiosos empreendimentos ladrilhados pelos bem-afortunados locais (associados ao Capital de outras plagas, nem sempre legal, e devidamente lavado para acobertar sua delituosa procedência); por sua vez, esses estarão associados aos processos de semeio de precárias moradias nos fundos dos pequenos vales (Timbó, Aratu e outros) que medeiam entre a “área nobre” e os bairros residenciais e comerciais ao seu oeste. Nessas áreas delicadas, a degradação ambiental estará associada à sua irmã siamesa, a social, ambas são ladrilhadas e semeadas no interior da mesma lógica.    
Para trás, vão ficando os “centros históricos” que guardam as “belezas do passado”. Será o busto de Tamandaré uma relíquia de nosso futuro, quando a cidade elegante tiver fugido para o Altiplano?
          O antigo lugar cívico da Capitania – onde, em tempos prístinos, provavelmente habitaram os potiguara, sucedidos pelos jesuítas e pelos moradores desse arrabalde, pelos Governantes e seus funcionários, pelos estudantes do Lyceu e da Escola Normal, pelos freqüentadores do Jardim Público (devidamente gradeado para espantar os indesejáveis), pelos Desembargadores e operadores do Judiciário, pelos Parlamentares Estaduais, pelo comércio mais refinado – foi sendo relegado paulatinamente ao papel de “relíquia” que é bom saber que está lá, que existe, mas que não convém freqüentar pelos habitantes da cidade cosmopolita. Resta aos que não usufruem dessa urbe moderna, se estabelecerem nesses lugares de formas possíveis como lavadores de carro, engraxates e outras pequenas ocupações urbanas. Como se espantar, senão para legitimar a religião nacional da hipocrisia, que algumas dessas pessoas adiram ao “submundo” dos crimes e das drogas, que tiram o sono de nossas autoridades de segurança pública e as pessoas de bem do lugar? Uma cidade que não fornece os confortos e direitos para todos, é geradora da insegurança pública estrutural. Isso não é paternalismo, é apenas a constatação de que esses processos só existem devidamente associados e que os ganhos de uns correspondem diretamente às perdas de outros.
História é coisa do presente e é o presente que nos interessa. Para além das dificuldades de exercício efetivo dos órgãos públicos como a Assembleia Legislativa da Paraíba no lugar (estacionamento, instalações etc), não seria melhor pensar numa solução “local” e inclusiva, social e economicamente, para os problemas? Por que não atacar os processos de concentração imobiliária e de estoque de edificações e terrenos, que, além de encarecerem o preço de compra (apanágio da violenta especulação que assola nossas cidades), transformam na mesma medida certos lugares em “fantasmas”? Não seria melhor discutir com responsabilidade social a efetiva ocupação da área e considerar os enormes prejuízos sociais e econômicos decorrentes da transferência da Assembleia para outra região? Não existem diversos imóveis desocupados ou sub-utilizados para os quais se poderia pensar a destinação pública e social? O lastimável arquivo da Assembleia (para não deixarmos de denunciar esse importante Patrimônio Público tratado com tanta incúria) não poderia ser alocado com conforto e todas as exigências técnicas em prédios abandonados das imediações, desde que devidamente feita a sua adequação? Não se pode levar efetivamente a sério os programas de habitação social no lugar? Não se pode valorizar as pequenas atividades de comércio e serviços que permitam a vida dos habitantes mais modestos da cidade? Não seria melhor levar em consideração as necessidades sociais, que não precisam estar em necessária contraposição ao conforto dos Parlamentares e funcionários do nosso Legislativo? Não seria importante pensar nessas coisas? Ou a ingenuidade e sua gêmea siamesa menos inocente – a cupidez – têm de guiar todo o processo? Temos de ladrilhar e semear perversamente os processos urbanos do futuro?        
Não é de desprezar o fato de que a cidade do futuro possa fazer “campanhas de valorização do Centro ‘Histórico’”, com slogans de “amor ao Centro”, concursos de redação nas Escolas para aplacar as consciências, criação de “centros de cultura” e “shoppings populares”. Mesmo os paraibanos de outras cidades não podem se furtar ao fato de que, no futuro, podem ser acrescidas despesas com segurança pública para os futuros contribuintes, a fim de “resolver” a insegurança do lugar. Lá virão denúncias de crimes e violências de toda a espécie, de depredação do Patrimônio Histórico, de abandono etc. O suposto “abandono” é produzido hoje, essa hipoteca será pesadamente resgatada no futuro. E se as coisas forem levadas do mesmo jeito, nossos futuros alcaides iluminados da Filipéia da Beira-Mar irão promover novas propostas de “revitalização” do lugar, que, invariavelmente, incluirão a exclusão dos pobres em seu cardápio. Por que, até não mudar a Capital e pensar num lugar novo digno das pessoas que virão, abandonando as ruínas do passado para trás? 

Hotel Globo - meados do século XX.














          Na contramão disso tudo, a comunidade do Porto do Capim tem aparecido como a principal novidade na política urbana da cidade, verdadeiro esteio de uma cidadania para além do discurso estéril e pouco convincente das autoridades, dos bem-nascidos e da mídia. Eles estão lutando para participar da ladrilhamento previsto para o lugar que há tempos semeiam com suas vidas e labutas, dizendo que a comunidade está lá e é a maior interessada e responsável pela sua preservação e desenvolvimento. No passado asséptico produzido às margens do poder, querem dizer que ali era o lugar nobre das caravelas onde os heróis fundadores empreenderam a civilização do lugar. Cabem alguns reparos: primeiramente, esses heróis fundadores foram os mesmos que promoveram a escravidão, que iniciaram a concentração de rendas e terras, que deixaram as fortunas para seus descendentes e a pobreza e outras mazelas para os seus pósteros não incluídos nas felizes genealogias nobilitantes. Portanto, não consta que devamos ser tão sentimentais em relação a essas pessoas de tempos idos, elas já usufruíram seu gostoso quinhão em vida. Outrossim, se ali havia um porto, não é preciso ser nenhum gênio da historiografia ocidental para saber que a área foi historicamente ocupada por populações trabalhadoras, que estão lá “desde sempre”, considerando que esse sempre começou depois que os potiguara foram devidamente “afastados” manu militari do lugar. Se alguém tem direitos legítimos a usufruir primeiramente da área, é quem já está lá agora, no presente, e que deseja ter voz ativa no que lhe diz respeito. Ou, se vamos “resgatar o passado”, devolvamos a área aos potiguara e ainda paguemos pelo seu uso secular.

No detalhe: Abaixo das glórias arquitetônicas da cidade, as moradias que não integram o
cenário celebrativo da História, mas que constroem as glórias alheias pelo seu trabalho.
Eles "sempre" estiveram lá. 


Há vezes nas quais os ladrilhadores semeiam problemas e os semeadores ladrilham soluções. Nossos parlamentares, que pretendem representar a voz do povo, teriam muito a ganhar se deixassem de se embalar pelo “som do mar e a luz do céu profundo” e aprendessem com os ribeirinhos que habitam as margens do Sanhauá, verdadeiro patrimônio do povo da Paraíba.        

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Rio: escavações revelam tesouro arqueológico em lixo da realeza

Arqueólogos acreditam que poderão recuperar até um milhão de peças, no que poderia ser um dos maiores achados arqueológicos do Brasil


Pasta para limpeza de dentes.
Um despejo do século 19 revelou no Rio de Janeiro um grande tesouro arqueológico com centenas de milhares de peças, incluindo uma escova com uma alusão ao imperador Dom Pedro II, que jogam luz sobre os costumes mais mundanos da elite da época da independência do Brasil.
Os arqueólogos catalogaram cerca de 200 mil objetos em bom estado de conservação em seis meses de trabalho e acreditam que poderão recuperar até um milhão de peças, no que poderia ser um dos maiores achados arqueológicos do Brasil, disse à Agência Efe o responsável pelas escavações, Cláudio Prado de Mello.
No acervo de peças encontradas estão restos de cosméticos franceses, água mineral importada da Inglaterra e um frasco de colônia com o curioso nome de "Anti-Catinga". Também há pratos e vasilhas de cerâmica, garrafas de licores e água, cachimbos com restos de tabaco, potes de porcelana com ungüentos e frascos com líquido em seu interior, que poderiam ser produtos medicinais, segundo os arqueólogos.
Manufatura indígena do século XVII.
As escavações mais profundas desencavaram objetos até do século 17, entre eles, alguns de manufatura indígena, como um raspador de sílex e um cachimbo feito com um chifre, que contrasta com outros cachimbos muito diferentes que pertenceram ou aos colonizadores europeus ou aos escravos africanos.​
Os europeus vão desde simples cachimbos de caulim até outros mais elaborados com cabeças de personagens talhadas, enquanto os dos escravos estavam decorados com grafismos que se correspondem com as escarificações ou marcas corporais que se tatuavam as tribos africanas.
Os arqueólogos fizeram a descoberta no início deste ano, quando se iniciaram no local obras relacionadas com a expansão do metrô. Devido a essas obras, que se prolongarão até 2016, os arqueólogos tiveram que interromper as escavações e terão que esperar três anos para voltar a abrir as fundações.
Então prosseguirão com os trabalhos para recuperar o "lixo" dos herdeiros da Casa de Bragança, a dinastia portuguesa, nos anos que fizeram do Brasil um Império, quando nem imaginavam o valor que teriam seus resíduos.